O DIABO - O GRANDE ENGANADOR (PARTE 1)
PREFÁCIO
Este estudo surgiu como uma série de artigos publicados pela Secção de Estudo Bíblico da Liga Cristadelfiana de Isolação, sob o título “algumas passagens difíceis”. Mais tarde, o assunto foi tratado mais detalhadamente em uma série de artigos sobre "O Diabo", publicado em “O Cristadelfiano (The Christadelphian)”, durante 1969 e 1970. Agora, em grande medida devido ao conselho útil de um crítico anónimo, os artigos foram alargados e uma tentativa foi feita, por um re-arranjo do material, apresentar uma sequência mais lógica.
Devo reconhecer minha dívida para com duas pessoas, além do crítico anónimo acima mencionado: o falecido Irmão James White, pelos seus dois artigos sobre "O Diabo e seus anjos”, publicado no Cristadelfiano (Julho e Agosto de 1950), e o falecido irmão W. Watkins pela discussão frutífera. Estes dois irmãos realmente me ajudaram muito, e agradeço a Deus pela sua contribuição para a minha compreensão da Bíblia neste assunto fascinante.
Outubro, 1971
PETER WATKINS
PRÓLOGO
As escrituras estão repletas de contrastes e paradoxos: o uso de opostos é uma das maneiras que Deus usa para revelar e explicar o Seu propósito para com a humanidade. É nos mostrado a qualidade do bem em contraste com o atributo do mal; aprendemos sobre a justiça, em comparação com o pecado. Somos ensinados a procurar a perfeição e santidade e evitar o mal. Desejamos a redenção porque reconhecemos a nossa fraqueza, e estamos ansiosos pela paz e justiça do Reino, pois será muito diferente da luta e da injustiça do domínio do homem.
Ao longo dos séculos, o homem ponderou sobre a natureza e origem do mal e raciocinando, talvez através de uma espécie de simetria natural, ele tem muitas vezes concluído que se existe um Deus do bem, pode haver também um deus do mal. Esse é o pensamento do homem ignorante: na verdade, isto é onde, pela primeira vez, existe uma quebra de simetria. Deus não tem quem se lhe assemelhe: “Eu sou o Senhor, e não há outro ... Eu formo a luz, e crio as trevas: eu faço a paz e crio o mal: eu, o Senhor, faço todas estas coisas” (Isaías 45:5 - 7).
Então porque é que a Bíblia está cheia de referências a Satanás e a um diabo? É esta pergunta que o falecido Peter Watkins abordou. Mas ele não aborda apenas os aspectos negativos do mal, do pecado e da questão de saber se existe “um grande enganador": ele passa a lidar com os contrastes positivos - obediência, redenção e a perfeição que se vêm no Senhor Jesus Cristo. Nas páginas que se seguem, temos não apenas uma refutação do erro, mas uma abundância de exortação edificadora. Somos encorajados assim: “Fazei, pois, morrer a vossa natureza terrena”, e somos encorajados a pensar “nas coisas lá do alto” (Colossenses 3:1-5).
John Morris
1
O derradeiro diabo é o próprio homem – não o homem que foi criado à imagem de Deus, mas o homem que, pela desobediência, manchou a imagem e foi condenado à morte.
Esta proposição surpreendente precisa ser explicada e qualificada, e este é o objetivo do presente estudo. Vamos tentar desvendar algumas das complexidades deste assunto bastante amplo, e o nosso método de procedimento será o de acompanhar as linhas guia que fornecem as próprias Escrituras. Essencialmente, isto é um estudo bíblico. A Bíblia deve ser o seu próprio intérprete.
O diabo, satanás, demónios, espíritos imundos, a serpente, o dragão: todos esses temas bíblicos estão tecidos num grande tema. Temos de tentar obter um entendimento das partes, e, portanto, estar em uma posição para ver o quadro como um todo.
E é importante que vejamos o quadro como um todo. Delicadamente gostaria de sugerir que foi por não conseguiram fazer isto que muitos estudantes diligentes da Bíblia têm sido afugentados deste assunto.
Deixe-me explicar. Estes estudantes das Escrituras começaram bem. É reconfortante observar como muitos leitores da Bíblia têm sido levados pela sua própria leitura à conclusão de que o diabo da Bíblia é, de alguma forma, um símbolo da natureza humana. É reconfortante que o estudo independente da Bíblia traz pessoas diferentes a uma mesma resposta; embora
a resposta em si mesma seja profundamente perturbadora. Na verdade, é impossível de ser confrontado com um facto mais humilhante do que o diabo estar dentro de nós e não fora de nós. Mas, voltando ao ponto, tendo chegado a ver que o diabo é de alguma forma – sim, geralmente muito vagamente – um símbolo da natureza humana, a maioria dos estudantes não toca mais no assunto. Para eles, a importância da descoberta pode ser negativamente afirmada: os seus olhos abriram-se para facto de que o diabo não é um monstro sobrenatural, afinal tudo. Alguns ainda seriam mais negativos, se possível, e dizer com alegria indecente: Então não há diabo, afinal!
Não! Não é tão fácil como isso. Esta atitude negativa é insatisfatória por duas razões. Em primeiro lugar, deve-se reconhecer que a equiparação do diabo com a natureza humana, ou com o que é indesejável na natureza humana, não é para destruir este poder do mal. O facto alarmante é que está agora mais perto de nós do que jamais poderiamos ter imaginado.
E em segundo lugar, o que devemos fazer com que a conjunto desconcertante de Escrituras sobre o diabo, satanás e espíritos malignos? Eles estão lá apenas para nos embraraçar? Considerando que muitos leitores da Bíblia sabem que conclusões não devem ser extraídas destas Escrituras, eles ficam perdidos porque não sabem que propósito positivo têm estas passagens.
Francamente, isto não é suficientemente bom. As Escrituras não foram dadas para confundir e inibir aqueles que estão em busca de sabedoria. “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra.” (2 Tm. 3: 16 , 17).
Quando partes da mensagem de Deus nos assustam ou constrangem, a coisa apropriada a fazer é enfrentar o desafio que elas apresentam. Por outras palavras, é necessário estudar mais. Quanto ao assunto em apreço, gostaria de sugerir que,
ao invés de defensivamente explicar, ou justificar, cada passagem acerca do “diabo” com que somos confrontados, devemos tomar a tarefa de procurar temas que correm por todas estas Escrituras, e assim obter uma imagem coerente e abrangente de todo o assunto. Esta é, na verdade, o que tentamos fazer aqui. A tarefa não está de forma alguma concluída: há ainda profundidades a serem exploradas, e as pontas soltas por atar. Mas se este estudo nos ajudar a ver que as Escrituras nos apresentam um tema grande, fascinante, ao invés de uma matriz exasperante de passagens desconcertantes, já será um bom começo.
Este tipo de pesquisa é maravilhosamente gratificante. É impressionante o quanto o grande tesouro do conhecimento bíblico irá render se nos dirigimos, com seriedade e espírito de oração, com a finalidade de procurar os seus mistérios. Afinal, as Escrituras foram fornecidos para a nossa instrução.
O Objectivo final
Embora o processo de conhecimento deste tema complexo é fascinante, este não é um fim em si mesmo. Há algumas lições que devem ser aprendidas vez após vez. Nós todos precisamos lembrar, repetidamente, que a busca do conhecimento sem sabedoria é vã. O estudo profundo da Bíblia deve nos fazer sentir humildes. Estamos caminhando em terra santa, e a maravilha da Palavra de Deus deve encher-nos com um sentimento de admiração. E quando um dos grandes temas dessa Palavra nos revela a dura realidade da nossa própria miséria, sentimo-nos obrigados a nos prostrar diante do trono da graça. Somos levados a ver quão desesperadamente precisamos do Senhor Jesus, o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.
Palavras
Por necessidade, teremos de voltar a nossa atenção, ocasionalmente, para os significados das palavras. Isso é necessário porque palavras como “diabo” e “Satanás” são muitas vezes incompreendidas e mal utilizadas, mesmo por pessoas que deveriam saber melhor. Para alguns leitores, o estudo das palavras é um tédio, e até mesmo uma coisa irritante. Eles têm a minha simpatia. Estudos de palavras podem ser exagerados, mas há ocasiões em que eles são inevitáveis. Tais comentários sobre os significados da palavra como terei de fazer devem ser vistos limpar o quadro em uma sala de aula, antes de começarmos com o que realmente importa.
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DIABOS E DIABOS
Existe um diabo. Que isto seja afirmado categoricamente à partida. O Novo Testamento contém tantas referências ao diabo e às obras do diabo que não podemos razoavelmente contestar esta afirmação.
Sabemos, é claro, que não há nenhum diabo pessoal sobrenatural, e às vezes é necessário corrigir aqueles que ingenuamente alegam que as Escrituras ensinam que esse monstro existe. Mas estaremos em desacordo com a Bíblia se dissermos que não há existe nenhum diabo. Será que imaginamos que nenhum efeito positivo foi destinado pela inclusão no Novo Testamento de tantas passagens sobre o diabo? Certamente elas são projetadas para nos ensinar algo; e devemos estar falhando verdades importantes se o nosso único interesse nestas passagens é explicá-las.
Será necessário, no decorrer de nossa discussão deste tema, demonstrar a falsidade da crença tradicional de que o diabo é um ser super-humano: mas não vamos parar por aí. O nosso objetivo principal é reunir o material disponível nas Escrituras e avançar para algumas conclusões positivas.
Uma Palavra do Novo Testamento
É uma surpresa para algumas pessoas ao saber que a primeira ocorrência da palavra diabo na Bíblia é em Mateus 4:1: “A seguir, foi Jesus levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo.”
Diabo é uma palavra do Novo Testamento, e o assunto é, na maioria das vezes, um assunto do Novo Testamento. Como todos os temas do Novo Testamento, no entanto, tem as suas raízes no Antigo Testamento, e a nossa investigação deve tomar o ensinamento do Antigo e Novo Testamentos em consideração.
A palavra Grega traduzida diabo é diabolos. Esta palavra é usada quase sempre no singular mas existem três exceções: 1 Timóteo 3:11; 2 Timóteo 3:3; Tito 2:3. Quase sempre aparece como o diabo, a única excepção aparece em João 6:70 onde Judas é chamado de diabo. O diabo é o grande inimigo de Deus, e tentador do homem.
O acusador
A palavra diabolos é composta de duas palavras Gregas: dia (através) e Ballo (arremessa). O diabo é quem arremessa, ou ataca, através. O ataque geralmente é verbal: ho diabolos, o diabo, é um acusador ou caluniador.
Foi feita referência a três passagens onde, inesperadamente, a palavra diabolos é usada no plural. É interessante notar que a palavra é traduzida maldizentes na primeira destas passagens, e caluniadores e caluniadoras nas outras duas.
“Da mesma sorte, quanto a mulheres, é necessário que sejam elas respeitáveis, não maldizentes, temperantes e fiéis em tudo.” (1 Tm. 3:11).
“Sabe, porém, isto: nos últimos dias, sobrevirão tempos difíceis, pois os homens serão egoístas, avarentos, jactanciosos, arrogantes, blasfemadores, desobedientes aos pais, ingratos, irreverentes,
desafeiçoados, implacáveis, caluniadores, sem domínio de si, cruéis, inimigos do bem” (2 Tm. 3: 1-3).
“Quanto às mulheres idosas, semelhantemente, que sejam sérias em seu proceder, não caluniadoras, não escravizadas a muito vinho; sejam mestras do bem,” (Tito 2: 3).
Uma inspecção das passagens em que a palavra original é diabolos, revelou que, no uso normal do Novo Testamento, a palavra é aplicada ao grande inimigo de Deus e grande tentador do homem.
Agora temos de ter em conta o facto de que o nome dado a esse poder é O Acusador. Deve haver uma boa razão para este nome. Ao passarmos a colher informações relativas a este poder hostil, temos de manter este nome em mente e ver se conseguimos descobrir porque o inimigo deve ser chamado ho diabolos – O Acusador.
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CONFLITO COM CRISTO
A Tentação no Deserto
Quem ou o quê é o diabo que tentou o Senhor Jesus Cristo no deserto? Voltemos a uma questão que já foi discutidas muitas vezes no passado.
A ideia popular é que o diabo que tentou Cristo era uma pessoa – uma poderosa, corporização do mal. Uma leitura rápida dos registos de Mateus, Marcos e Lucas parece prover suporte para esta ideia. Existe um diálogo entre o diabo e o Senhor Jesus. O diabo sugere que seria vantajoso para Jesus fazer certas coisas que são contrárias à vontade de Deus. Jesus repudia essas sugestões, e o diabo vai embora.
Uma leitura cuidadosa, no entanto, revela um número de dificuldades. Primeiro, existem dificuldades em relação às circunstâncias da tentação. É dito expressamente em Mateus, Marcos e Lucas, que a tentação teve lugar no deserto. Assim afirma Marcos: “o Espírito o impeliu para o deserto, onde permaneceu quarenta dias, sendo tentado por Satanás; estava com as feras, mas os anjos o serviam” (1:12-13). No entanto em uma das tentações o Senhor Jesus é levado até ao pináculo do templo, em Jerusalém. Jerusalém não estava situada no deserto. Mais uma vez, é nos dito que o diabo levou Jesus até um alto monte, e mostrou-lhe todos os reinos do mundo num instante de tempo. Existe, ou existiu no deserto ou fora dele, uma montanha de onde todos os reino pudessem ser vistos de um vez? Quase que se pode ouvir a reprimenda de que estas coisas estão escritas, e temos que acreditar nelas. Verdade; mas talvez possam ser entendidas de uma outra forma.
Jesus seguiu?
Mas as dificuldade ainda não terminaram. Existem objeções mais sérias contra o ponto de vista de que todos os detalhes devem ser entendidos literalmente, e que o diabo é uma pessoa. Considere a tentação em relação ao pináculo do templo. A partir dos Evangelhos aprendemos que o Senhor detestava tudo o que se opunha à vontade do Seu Pai. Com vista nisto, será que podemos imaginá-lo seguindo com resignação a trás deste perigoso inimigo até Jerusalém, e até ao templo? Podemos visualizá-los ambos subindo ao pináculo? Será que visualizamos Jesus lá à beira de cair? Será que o Senhor permitiria um tentador maligno trazê-lo até esse ponto sem que antes tenha disto, Não? Fazer tais concessões a um tentador certamente não seria consistente com o que lemos sobre o caráter de Jesus.
Ainda, pense na tentação de se curvar diante do diabo, e receber todos os reinos do mundo. Imagine que alguém importante e poderosa fazia esta a oferta a nós. Como reagiríamos? Não importa quão grande seria o tentador, saberíamos que ele não estava numa posição de cumprir tal promessa. A tentação não seria real. Seria para nós mais uma anedota do que uma promessa real. Certamente Jesus, que tinha tanto respeito pela Palavra de Deus, e que saberia muito bem que “do Senhor é a terra e a sua plenitude”, não seria nem no grau mais pequeno tentado por qualquer impostor (pois seria um impostor) que lhe fizesse uma oferta extravagante e impossível como essa.
A Destruição do Diabo no Calvário
Qualquer interpretação das Escrituras que não faz sentido deve ser rejeitada. Temos que ver se a tentação no deserto pode ser entendida de uma maneira que faça sentido. Mas antes de fazer isso, primeiro queremos examinar outra passagem que nos pode ajudar. A passo que Jesus resistiu ao diabo no deserto (não importa como isso seja entendido), ele destruiu o diabo quando foi crucificado. Hebreus 2:14 declara: “Visto, pois, que os filhos têm participação comum de carne e sangue, destes também ele, igualmente, participou, para que, por sua morte, destruísse aquele que tem o poder da morte, a saber, o diabo”
Esta passagem diz-nos que porque “os filhos” (ou seja, os que são salvos em Cristo, como se vê nos versículos anteriores) são criaturas de carne e sangue, Cristo também teve uma natureza semelhante à deles. Porque veio ele com a nossa natureza? Para poder morrer. E porque era necessário que ele morresse? Para que, pela morte, destruísse o diabo.
Suponha que a ideia popular é verdadeira, e que o diabo é um ser maligno poderoso. É razoável supor que Jesus Cristo teria que vir com a nossa débil natureza humana e morrer na cruz para destruir esse monstro? Como poderia a morte de Cristo ter o efeito da destruição desta suprema corporização do mal – se o diabo deve ser visto como tal? E se a morte de Cristo era para o propósito de destruir um monstro, não estaria morto o monstro agora?
Aqui pode-se ver que é necessário outra explicação. É necessária uma definição do diabo que faça sentido a par dos relatos da tentação que se encontram nos Evangelhos, e da passagem citada de Hebreus. Pode esse definição ser encontrada?
Desejos que Vão Contra a Vontade de Deus
Alega-se que a seguinte definição remove os problemas: o diabo é um símbolo dos desejos humanos que vão contra a vontade de Deus. Não existe falta de apoio bíblico para esta definição, falaremos disto mais tarde. O nosso propósito imediato, no entanto, deve ser ver como esta definição encaixa no relato da tentação no deserto, e no ensinamento de Hebreus 2:14.
“Em todas as coisas...”
O diabo que tentou o Senhor Jesus era os seus próprios desejos humanos. Essa é a proposição que devemos examinar agora. Praticamente não é preciso mencionar que existe um grande conjunto de evidências, particularmente em Hebreus, de que o Senhor Jesus possuía uma natureza como a nossa. Novamente nos referimos a Hebreus 2:14 – à primeira parte do versículo: “Visto, pois, que os filhos têm participação comum de carne e sangue, destes também ele, igualmente, participou...” As palavras, “também”, e “ele” e “igualmente” foram escolhidas para sublinhar o facto de que o Senhor Jesus realmente possuía uma natureza como a nossa. No versículo 17 do mesmo capítulo repete este mesmo ponto: “Por isso mesmo, convinha que, em todas as coisas, se tornasse semelhante aos irmãos”; e Hebreus 4:15 diz que “foi ele tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado”. Não desonramos Cristo quando dizemos que ele foi tentado como nós somos. Damos-lhe ainda mais honra, porque reconhecemos que, embora ele tivesse sido tentado como nós o somos, ele nunca pecou. Nisto ele foi único.
Outra Olhada à Tentação
Agora tentemos resolver os detalhes da tentação no deserto. Imediatamente depois do seu batismo, o Senhor Jesus recebeu o Espírito Santo e ouviu uma voz do céu dizendo, “Este é o meu filho amado, em quem me comprazo”. Estes novos poderes, e este novo estatuto anunciado, abriu possibilidades tanto excitantes como perigosas. Embora a sua vida tenha sido, até este ponto, uma preparação, esta nova situação requeria um curso curto e intensivo de preparação. Este tomou a forma de tentações onde as possibilidades desta nova situação foram exploradas ao máximo. Duas vezes as tentações foram apresentadas pelas seguintes palavras, “Se és o Filho de Deus”; e duas vezes, pelo menos, a sugestão foi feita que estes poderes acabados de receber poderiam ser usados para motivos egoístas.
O Senhor Jesus Cristo tinha estado quarenta dias sem comida. Naturalmente, ele sentia muita fome e os seu pensamentos eram como iria encontrar comida. Quarenta dias antes ele tinha ouvido Deus chamando-lhe de Seu Filho; e tinha recebido novos poderes maravilhosos. Se ele era realmente o Filho de Deus, e se, como tal, ele possuía estes poderes, isto seria uma ocasião para agir. Tentativamente e reverentemente, tentamos pensar que com que tipos de pensamentos o nosso Senhor teve que lutar: “Tu és o Filho de Deus; tu vieste para fazer a vontade do teu Pai, tens que viver. Se é para viveres, tens que comer. E se tens que comer tens que produzir comida, porque não existe nenhuma neste deserto. Tu tens que usar os teus poderes milagrosos e transformar estas pedras em pão, e garantir assim que continuarás vivo para fazer a vontade de Deus”. Teria sido fatalmente fácil para alguém com a nossa carne e sangue raciocinar dessa maneira. E teria sido fatalmente fácil sucumbir a tais pensamentos. Mas se o Senhor Jesus tivesse sucumbido a isso, teria sido pecado, e a tragédia do Éden teria acontecido novamente com consequência irrevogáveis.
O Espírito Prevalece sobre a Carne
É difícil de imaginar o Senhor seguindo um tentador até ao pináculo do templo; mas é fácil imaginar os seus pensamentos tendo sido levados até esse lugar. “Se és o Filho de Deus”, ele poderá ter pensado para si mesmo, “porque não dar aos homens uma prova desse facto? Isso garantiria o sucesso da tua obra para Deus, e Deus seria glorificado. Atira-te daí abaixo!”
Foi difícil imaginar Jesus literalmente subindo a um monte do qual todos os reinos do mundo poderiam ser visto num momento de tempo. Mas é fácil imaginar, ele ascendendo, em sua imaginação, a um ponto de vantagem do qual poderia ver o grande reino que o seu Pai lhe prometera. Sim, foi-lhe prometido, e agora estava ao seu alcance, pois ele tinha grande poder. Se ele tomasse a posse do mundo agora, o propósito final de Deus se cumpriria, e a dor e vergonha da crucificação seriam evitadas. A ideia era atrativa. Tudo o que tinha que fazer era curvar-se perante si mesmo – e o reino seria seu!
A tenção deste tipo era real. Era uma batalha entre a carne e o espirito, e o espírito prevaleceu. O valor desta vivência era imenso, porque isto apresentou a Jesus a tentações que se poderiam apresentar de um modo mais sutil durante o seu ministério.
A Tentação se Repete
Em Lucas 4 – o capítulo que descreve a tentação – está registado que a multidão enfurecida em Nazaré tentou jogar Jesus de um precipício. Quão fácil teria sido submeter-se a isso, e deixar que eles o jogassem de lá para baixo. Então eles ficariam pasmados ao vê-lo ser gentilmente carregado pelos anjos. A tentação era sutil, porque isto não era algo que ele tivesse planeado antes. As circunstâncias levaram-no a esta situação, e certamente Deus estava dirigindo as circunstâncias dele. Mas o seu pensamento já tinha sido exercitado sobre este tipo de situação no deserto. Ele sabia que qualquer demonstração desse tipo não fazia parte do plano de Deus para ele, e “Jesus, porém, passando por entre eles, retirou-se.”
Tome outro exemplo, o Senhor provavelmente vivenciou uma tentação similar à tentação das “pedras transformadas em pão” quando pregava em Samaria, Em João 4 é nos dito claramente que Jesus estava cansado (“Cansado da viagem, assentara-se Jesus junto à fonte”). Existem indicações também que ele estava com sede e fome: os discípulos tinham ido à aldeia comprar comida; e Jesus pediu água à mulher Samaritana. O impulso de satisfazer estes desejos naturais de descansar, comer e beber deveria ser forte. Em circunstâncias normais teria sido permissível; mas havia trabalho a fazer , ele recusou se distrair com estas necessidades da carne. Água, comida e descanso tornaram-se irrelevantes. Era a vontade do Pai que Jesus continuasse trabalhando, e isso era tudo o que importava.
Novamente Hebreus 2:14
Os desejos humanos que foram frustrados no deserto foram destruídos no Cálvario. Enquanto houvesse a natureza Adâmica, haveria a possibilidade de tentação. Não foi o suficiente frustrar os desejos humanos que se opunham à vontade de Deus. Tinham que ser destruídos. E como poderia isto ser feito senão pela destruição da fonte desses desejos – a natureza herdada de Adão? Assim o Senhor Jesus destruiu o pecado no lugar onde ele residia. Ele destruiu o pecado na carne.
Esta é a mensagem de Hebreus 2:14. Jesus veio com a nossa natureza para que pudesse morrer; para que, pela sua morte, o diabo, ou os desejos humanos contrários à vontade de Deus, pudessem ser destruídos na sua fonte. Jesus aniquilou “pelo sacrifício de si mesmo, o pecado” (Hebreus 9:26).
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CAPRICHOS E FALÁCIAS
JÁ vimos que a ideia de que o diabo é um monstro super-humano não se enquadra com o registo da tentação do Senhor, ou com o ensino de Hebreus 2:14. A teoria tem outras fraquezas também, e talvez devamos examiná-las agora e limpar o caminho para uma investigação mais positiva.
Silêncio Eloquente
Já foi apontado que o tema do diabo é um tema do Novo Testamento. Isto é, em si mesmo, significativo. Aqueles que acreditam num diabo pessoal também creem que este diabo estava vivo e ativo no tempo do Antigo Testamento. Porque é então só mencionado no Novo Testamento? É afirmado que o diabo foi responsável pela tentação e queda do homem, e no entanto não existe qualquer indicação do papel fatídico atribuído a esse monstro no registo de Génesis. É suposto que o diabo iniciou a grande tragédia humana mas que tem estado profundamente envolvido desde então, exercendo grande força para assegurar-se que o mal e o sofrimento nunca deixem a raça humana. No entanto, o longo registo do Antigo Testamento sobre o pecado humano e graça divina nem sequer dá uma referência incidental desde espírito maligno.
Escrituras Deturpadas
Alguns objetariam, e insistiriam que o diabo é mencionado no Antigo Testamento – não por esse nome mas por outros, como Satanás, Lúcifer e “querubim ungido”.
Em relação a Satanás, é suficiente mencionar que o uso desta palavra no Antigo Testamento é um estudo interessante que iremos estudar com detalhe nos próximos 2 capítulos. As outras duas alusões são Isaías 14 e Ezequiel 28.
“Como caíste do céu, ó estrela da manhã(em traduções antigas, Lúcifer), filho da alva! Como foste lançado por terra, tu que debilitavas as nações! Tu dizias no teu coração: Eu subirei ao céu; acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono e no monte da congregação me assentarei, nas extremidades do Norte; subirei acima das mais altas nuvens e serei semelhante ao Altíssimo. Contudo, serás precipitado para o reino dos mortos, no mais profundo do abismo” (Isaías 14:12-15).
“Estavas no Éden, jardim de Deus; de todas as pedras preciosas te cobrias: o sárdio, o topázio, o diamante, o berilo, o ônix, o jaspe, a safira, o carbúnculo e a esmeralda; de ouro se te fizeram os engastes e os ornamentos; no dia em que foste criado, foram eles preparados. Tu eras querubim da guarda ungido, e te estabeleci; permanecias no monte santo de Deus, no brilho das pedras andavas. Perfeito eras nos teus caminhos, desde o dia em que foste criado até que se achou iniquidade em ti” (Ezequiel 28:13-15).
Ler estas passagens no seu contexto é ver que elas não têm nada que ver com um diabo pessoal. Os profetas, Isaías e Ezequiel, são os mais preparados para nos dizerem do que se tratam as suas profecias. As palavras de Isaías estão na seção de profecias contra as nações, e fazem parte da profecia contra a Babilónia. No versículo 4 do mesmo capítulo diz, “Proferirás este motejo contra o rei da Babilónia e dirás...” Similarmente, as palavras de Ezequiel estão numa seção do seu livro sobre julgamentos sobre as nações Gentias. Se vermos logo no versículo anterior em Ezequiel lemos “Filho do homem, levanta uma lamentação contra o rei de Tiro...” Esta afirmação explícita decide a questão: é sobre o rei de Tiro. As palavras concernentes ao Éden são obviamente figurativas como a passagem do capítulo 31 onde a Assíria é descrita como uma árvore no Éden da qual todas as outras árvores têm inveja.
Um Anjo Caído
O ponto de vista popular é que o diabo é um anjo caído. A queda supostamente aconteceu antes da criação de Adão. Esta teoria não é nem Bíblica nem lógica.
Uma passagem que é usada como prova é Apocalipse 12:7-10:
“ouve peleja no céu. Miguel e os seus anjos pelejaram contra o dragão. Também pelejaram o dragão e seus anjos; todavia, não prevaleceram; nem mais se achou no céu o lugar deles. E foi expulso o grande dragão, a antiga serpente, que se chama diabo e Satanás, o sedutor de todo o mundo, sim, foi atirado para a terra, e, com ele, os seus anjos. Então, ouvi grande voz do céu, proclamando: Agora, veio a salvação, o poder, o reino do nosso Deus e a autoridade do seu Cristo, pois foi expulso o acusador de nossos irmãos, o mesmo que os acusa de dia e de noite, diante do nosso Deus.”
Um breve comentário é suficiente. O Livro de Apocalipse é um livro de símbolos, primariamente sobre o futuro. A mesma narrativa, no mesmo capítulo, fala de uma mulher, vestida do sol, com a lua debaixo dos seus pés. Pode alguém insistir em que isto é literal?
Incidentalmente, é digno de nota que o diabo em Apocalipse 12 é também chamado de “antiga serpente”, por isso existe alguma ligação entre o diabo e a serpente. Notamos também que o nome Satanás é usado para descrever o mesmo poder. Teremos que fazer uso desta informação mais tarde.
Que tipo de natureza é suposto possuir este anjo caído? É nos dito que ele tem a mesma natureza que associamos aos anjos – natureza espiritual. Isto imediatamente levanta um problema. Segundo o Senhor Jesus, anjos não morrem. Falando dos “filhos da ressurreição” ele diz, “... Pois não podem mais morrer, porque são iguais aos anjos” (Lucas 20:36). Se por conseguinte o diabo possui a natureza de um anjo, ele deve ser imortal. E no entanto as Escrituras como Hebreus 12:14 falam da destruição do diabo.
Os problemas não terminam aqui. Embora os anjos não morram, eles não são imortais por si mesmos, por assim dizer. Ele derivam a sua imortalidade de Deus. Paulo expressa esta verdade essencial quando diz que Deus é “o único que possui imortalidade” (1 Timóteo 6:16). É então concebível que Deus, a única fonte de imortalidade, permita que um arqui-inimigo eternamente derive vida d'Ele e torne-se (no mesmo sentido que os anjos) imortal? Robert Roberts disse e bem que “um rebelde imortal é uma impossibilidade... o diabo mencionado na Bíblia é um pecador 81 João 3:8): logo o diabo não pode ser imortal” (Cristandade Desviada, Capítulo 7).
As Testemunhas de Jeová, que são fortes na sua crença de que o diabo é um anjo caído, protestam que eles não acreditam que o diabo viverá para sempre. No entanto o Senhor Jesus disse que os anjos não morrem.
Diabos ad infinitum
O papel atribuído ao diabo na queda do homem é interessante. É argumentado que os nossos primeiros pais eram demasiado inocentes, e muito bons em todos os sentidos, para serem tentados por uma mera serpente. O diabo, dizem, era o génio do mal responsável pela transgressão do homem. Segundo alguns, o diabo apareceu a Eva disfarçado de serpente; segundo outros, o diabo usou a serpente como um instrumento para tentar Eva. Estas são apenas variações de um mesmo tema; em ambos os casos o diabo é representado como o verdadeiro tentador.
Levemos então este tema à sua conclusão lógica. A natureza de Adão e Eva era tão boa, é nos dito, que somente um poderoso tentador poderia fazer com que caíssem. Se então não era fácil fazer este par humano sem mancha ser levado a pecar, quanto mais difícil teria sido tentar um anjo! (Lembre-se de que o diabo é supostamente um anjo caído!) Se nada menos do que a intervenção de Satanás, o anjo caído, pode explicar a queda destes seres humanos, quanto mais poderoso deve ter sido o tentador que persuadiu este anjo de Deus a rebelar-se, causando a sua queda! Deve haver então diabo muito maior ainda por de trás do diabo anjo caído. No entanto este arqui-diabo que, segundo esta lógica bizarra, deve ter começado tudo isso, não é nunca mencionado. Mas espere! Foi realmente este arqui-diabo que começou tudo!? Certamente ele deve ter sido desencaminhado por um tentador maior ainda...
Negação Categórica
Existe uma passagem no Antigo Testamento que merece uma menção especial, porque é uma forte negação da heresia do diabo pessoal: Isaías 45:5-7. Significativamente, as palavras são dirigidas a Círo, o rei dos Persas, como nos diz o primeiro versículo do capítulo. Isto é significativo porque os Persas, acima de todos os outros, acreditavam num diabo pessoal. Eles acreditavam que existiam dois grandes deuses lutando pelo poder – um deus do bem e da luz, e um deus do mal e das trevas. Nesta passagem Deus indignado repudia a ideia de que tenha um rival:
“Eu sou o SENHOR, e não há outro; além de mim não há Deus; eu te cingirei, ainda que não me conheces. Para que se saiba, até ao nascente do sol e até ao poente, que além de mim não há outro; eu sou o SENHOR, e não há outro. Eu formo a luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu, o SENHOR, faço todas estas coisas.”
Alguns ficam indispostos pela afirmação de Deus de criar o mal. Eles não percebem que o mal não é o mesmo que pecado. O mal são dificuldades, geralmente que vêm sobre os pecadores. Assim, Deus pergunta, retoricamente, através do profeta Amós, “Tocar-se-á a trombeta na cidade, sem que o povo se estremeça? Sucederá algum mal à cidade, sem que o SENHOR o tenha feito?” (Amós 3:6).
Ao seguirmos este assunto, não percamos o ponto principal. Deus Ele próprio declara, através de Isaías, que Ele não tem rival. Não existe um diabo, pessoal, super-natural.
(The Devil: The Great Deceiver por Peter Watkins, tradução para português: S.Mestre)